Eu cá continuo a sonhar muito com a
voz da minha avó. Da minha avó, essa voz que foi desaparecendo nos últimos dez
anos. Assim como a minha avó. Mas isso sempre sonhei: quando eram sonhos bons
eram regados com as gargalhadas dela, com as suas conversas e piadas ou
simplesmente com o tic-tac do relógio de casa dela. Aquele relógio grande, no
cimo das escadas, cujo som embalava à noite e ajudava a dar um ritmo muito próprio
aos primeiros instantes do acordar. Era o ritmo de casa da avó, a casa onde eu
sempre gostei de estar, onde eu sempre queria estar, o ritmo que era ajudado
pelas mãos do avô que lhe dava sempre corda. O tic-tac que parou quando o avô
morreu e todos fomos apanhados na dor dessa perda tão repentina, tão
inesperada. O tic-tac parou e a casa da avó deixou de ser a mesma casa, com a
falta do nosso Xico e desse tic-tac que para mim era como que o coração dos
meus avós. Pedi à avó para não deixar morrer esse tic, esse tac. E ela lá foi
dando corda ao tic-tac do avô, enquanto me segredava - quando os “adultos”
saíam da sala - que ainda não se tinha bem habituado à ideia da morte do avô, e
que ainda falava com ele, quando ninguém via. E perguntava-me se eu a achava
maluca por isso. Mal sabia ela que eu falava com eles os dois também em silêncio. E pedia
(peço) tantas desculpas ao meu avô por ter tido aquele pensamento tão mau
quando soube da sua morte. Porque quando o meu avô VôXico morreu, tinha eu uns
15 anos, eu só conseguia pensar “ainda bem que não foi a minha Jula”. Porque eu
não sabia bem como ia eu reagir ao desaparecimento da minha Jula. Sem saber
nessa altura que ela ia, em poucos anos, começar a começar a desaparecer. Aos
poucos, muito devagarinho.
Mas voltando aos sonhos. Os bons já
referi, mas muitos deles eram maus. Eram, exactamente, sobre a avó doente,
sobre a morte da minha Jula. O meu grande medo. Porque a avó Jula era um “eu”
em grande, e talvez achando que a perdia, eu lá muito no fundo achava que uma
parte de mim também se perdia. E perdeu. Foi perdendo. Porque sempre me achei
muito parecida com a minha avó. E, pese embora a minha muito baixa auto-estima,
isso era uma coisa boa. Porque a minha avó era a pessoa mais boa-onda e
boazinha que eu conhecia. Ou era como eu a via e vejo, e quero que assim
continue. O mais assustador desses sonhos era quando eles, de algum modo, se
tornavam verdade. Como um há uns anos atrás onde a minha avó ficava muito
doente, ia para o hospital e eu tentava ir vê-la e nunca conseguia, e quando
finalmente o fiz, ela tinha acabado de falecer. E eu com tanto para lhe dizer.
Nesse dia, depois de acordar angustiada, a minha mãe envia-me uma mensagem a
dizer que a avó tinha ido para o hospital. Mas ficou bem. Já eu, nunca mais me
esqueci do sonho.
Anos depois outro sonho do mesmo
género. Ao fim do dia, telefonema da mãe: “A avó foi para o hospital”. Ficou
muitos dias no hospital nessa vez, e eu aí consegui fazer o que no sonho não
consegui: disse-lhe como eu gostava dela e como ela tinha um peso tão grande na
formação da pessoa que sou hoje, que quando pensava em bem-estar e paz pensava
nela e no avô e no tic-tac deles. E agradeci-lhe. Baixinho, a fazer-lhe muitas
festinhas na cara, enquanto ela batalhava para respirar, com a cabeça noutro
mundo que não é este nosso.
No dia em que ela faleceu, eu,
claro, tinha sonhado com ela e nesse sonho penalizava-me por não a ir visitar
há já muito tempo, mas aguentei-me sem pensar muito no assunto, aliviada por
saber que não tinha sido uma morte sofrida. Porque ela não merecia. No velório
e funeral coloquei o meu melhor humor, e ia às escondidas à casa de banho
chorar um bocadinho para aliviar. Como ainda faço.
Há cerca de mês e meio obriguei-me
a passar em frente à casa dela. A casa onde sempre me imaginei a morar. Porque
aquele era o meu paraíso, o meu escape, o meu canto. Fim-de-semana perfeito era
ou a passear, ou em casa da AvóJula. Na adolescência, sempre que sentia que o
mundo (leia-se pais ou irmã!) era tão injusto, pensava sempre que perfeição
seria morar com os avós! Quando o nosso Xico morreu pensei seriamente em ficar a
morar lá para fazer companhia à minha Jula, sentia-a tão perdida. Fiquei uns tempos
e obriguei-a a trabalhar muito: mudar móveis, tirar alcatifa, arrumar roupeiros…até
ela me pedir para ter calma! Mas a mim custava que a casa estivesse então tão
diferente, não queria perder aquela minha paz, que se foi muito com a morte do
nosso Xico. Agora, quando lá passei observei a casa diferente, o quintal diferente
e outras vidas lá dentro, outro interior que nem consigo imaginar. E chorei,
chorei uns 20 minutos parada frente ao quintal, até o cão que agora o habita
começar a rosnar. E virei costas.
Já há muito tempo que queria
escrever sobre a minha avó e avô, mesmo antes de Agosto, mas não conseguia.
Porque sei que tenho tanto para dizer. Hoje, não sei bem como, lá vão saindo
palavras (muitas até), mas parece que o que sinto mesmo não me sai dos dedos.
Fica só a tentativa, até porque sabe bem tentar pôr por palavras algo que é um
misto de dor e de felicidade. Dor porque nada dura para sempre. Felicidade
porque tive duas pessoas lindas na minha vida, e delas herdei tanto.
Se alguém teve paciência e tempo
para ler tanta e longa lamechice a pairar na blogosfera, as minhas desculpas. Mas
precisava deste exercício.